Ensaios sobre dádiva, expurgo e promessa… e bandido morto! – Entrevista com Renato Valle

por Panorama Crítico1

Em uma agradável tarde de fim de outono, encontramos com o artista, Renato Valle, para uma conversa sobre a exposição Ensaios sobre dádiva, expurgo e promessa, em cartaz na galeria Xico Stockinger na Casa de Cultura Mario Quintana, e o lançamento da revista Bandido Bom é Bandido Morto. Renato chegou acompanhado da curadora da exposição, Lilian Maus. Após uma primeira conversa, resolvemos realizar a entrevista em dois bancos localizados em frente a galeria, nos corredores da CCMQ. Após movermos os bancos e posicioná-los da maneira mais adequada para a entrevista, iniciamos a conversa…

Panorama Crítico: Quem é Renato Valle?

Renato Valle: Que pergunta difícil… Bom… um artista de Recife que trabalha há 46 anos com artes visuais. Sou do tempo das artes plásticas, não se chamava artes visuais. Nunca tive outra atividade na vida, sempre as atividades foram correlatas – dar oficinas, projeto de residência – enfim, minha vida essa! É trabalhar com desenho, com pintura, escultura, objetos sempre me movimentando por imagens, me expressando através de imagem e às vezes com o texto ou com frases integradas ao trabalho.

P.C.: A respeito da questão da produção relacionada com religião e política?

R.V.: Isso vem de antes do início… desde o início do trabalho que essas imagens, esses símbolos religiosos, apareciam. Muitas vezes eu não teorizo muito, eu não sou da área de teoria. Então meu trabalho ele surge muito pela intuição e por questões estéticas intuitivas e aí no decorrer dele é que eu vou percebendo algumas coisas. Dificilmente eu planejo uma coisa na sua totalidade, eles surgem e aí daí eu começo a pensar, em conversas com outras pessoas com os amigos artistas, eu vou percebendo mais coisas e às vezes isso pega um viés que se estende por muito tempo.
Esses trabalhos por exemplo, que estão aqui expostos, com as resinas, meu desenho e minha pintura sempre tiveram muita volumetria. Tem uma produção também que é abstrata, geométrica e tudo mais, mas o trabalho figurativo sempre tem muita volumetria, sempre teve muito a questão do volume, da luz e da sombra.
Eu tinha vontade de trabalhar com escultura, mas é uma coisa cara trabalhar com objeto. Eu fiz algumas experiências mas não fazia grandes produções. Queria fazer isso, e através de um projeto pelo Funcultura (fundo de cultura do estado de Pernambuco) e com o apoio da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) me foi cedido um ateliê dentro da universidade, no centro de artes, e o financiamento pelo fundo de cultura foi como eu consegui desenvolver esse trabalho. Mas o nome do projeto era pesquisa em suporte tridimensionais, e eu não sabia que tipo de produção seria. Era para pesquisar a resina, o barro, a argila e fazer alguma coisa sempre em 3 dimensões, que seriam esculturas e objetos. Logo nos primeiros momentos da pesquisa, eu que tinha esse viés dos símbolos religiosos no trabalho, fiz uma experiência; comprar uma imagem do Cristo, tirar da Cruz, fazer um  molde e reproduzir essa imagem. Acabou virando o tema do projeto. Estive lá por um ano, depois fiquei mais um ano por conta, não mais com o apoio financeiro do Funcultura, mas me virando para concluir o trabalho. O tema todo foi esse, que daí eu chamei de Cristos e Anticristos trazendo a questão do símbolo, da sombra e da luz, do bem do mal, de positivo e negativo. Nada apocalíptico não, foi mais nesse sentido de pegar a figura do Cristo e reinterpretar os símbolos que tinham mais a ver com meu pensamento sobre o cristianismo. A religião e a política não são nunca partidárias e nem institucionais no meu trabalho, não é uma defesa de ideologia mas um pensamento dentro de uma necessidade de vivenciar, no dia a dia, essas práticas da boa política e da boa religiosidade que para mim estão andando sempre juntas. Que é como eu me comporto na vida, como eu me comporto nas minhas relações, como é que eu vejo o mundo.
Essas coisas estão muito presentes. Do meu comportamento no dia a dia e nas relações pessoais mesmo, minhas relações com o mundo. Eu só pude ter uma visão mais clara disso no decorrer do tempo, mas esses símbolos aparecem desde os primeiros desenhos, principalmente os de 1978 já aparecem muitos símbolos religiosos. O ex-voto aparece na minha pintura mais por interesse estético, depois eu  percebo que tem um viés também de religiosidade aí sabe… da coisa do agradecimento, do pedido… esse trabalho de 5000 desenhos! Então essas coisas vão andando, tem me acompanhado ao longo desse tempo todo. Não é só isso, mas eu acho que é o que mais predomina assim no conjunto do meu trabalho.
Essa conversa, entre séries diferentes que tem temas ligados a essa política e a essa religiosidade, é a terceira vez que que exponho. E nessa exposição aqui no MACRS, a Lilian fez a curadoria e inseriu uma coisa que nas outras não tinha, que era a pintura. Eu não tinha pensado em colocar a pintura. Porque no início eu queria fazer só uma coisa o preto e o branco e depois entrou alguns elementos com uma Cruz com Coca-Cola, o mealheiro que o dinheiro da a cor e etc. Mas predominantemente preto e branco. Mas aí quando Lilian esteve lá no ateliê ela sugeriu isso, ela queria que tivesse pinturas também. Como eu estava preparando uma exposição que também tinha pintura, escolhemos as 4 obras que se integravam bem também nessa conversa. Não é enfim aí fomos conversando sobre outras questões que amarramos essa mostra para cá.

Lilian Maus: A conversa foi pensando no espaço do MACRS, pensando no espaço da sala (Galeria Xico Stockinger). Então a escolha das obras, além da temática e além de ter um caminho entre o desenho pintura e escultura, que é o que eu queria, que tivesse as 3 coisas. Pois eu também queria que fosse uma representação dos últimos 20 anos do trabalho do Renato, pois ele é um artista que trabalha com muitos meios, então eu procurei que um pouco de cada uma dessas coisas que estivessem presentes. Além de eu gostar muito da pintura dele! Acho que ela está bem representada dentro desse conjunto que trata dos Cristos, dos mealheiros… Pela temática conseguimos ir por essa forma, da Cruz, conseguimos dar uma unidade nos conjuntos, e também a cor. Essa pluralidade toda entra no último trabalho do Renato, que é bem importante,  que essa revista – Bandido bom é bandido morto –  que traz um pouco desse pot-pourri, onde é possível ver uma pluralidade não só de técnicas mas de estilos. O Renato transita por muitos estilos também, e aí está, acho,  a cara que a exposição tinha que espelhar um pouquinho, que está nesse conteúdo da revista que é o trabalho mais recente.

Mealheiro 1 e Mealheiro 2 (fé demais). Óleo sobre tela. 2018-2019

P.C.: Uma coisa que tu comentou quando disseste “já eu não sou um teórico”. Olhando revista percebe-se que tem muito de pesquisa ali.

R.V.: É o eu digo que eu não sou um teórico é que eu não tenho preocupação em elaborar um conceito para trabalhar em cima dele. As coisas vão acontecendo e normalmente elas acontecem por uma inquietação, um impulso que vai para uma coisa e que às vezes até no decorrer toma um outro um outro viés, e aí eu começo a pensar e vou juntando essas coisas. Porque tem gente que trabalha assim:  conceitua todo o trabalho que vai fazer e constrói a obra a partir daquele conceito… Pra mim não tem uma fórmula, cada um tem um jeito de fazer. O meu jeito é esse! É muito da intuição sabe. Essa revista por exemplo quando eu pensei, eu pensava em outra coisa… pensava em escrever algo no edital da Funarte que tinha aberto para arte digital.
Nisso comecei a fazer umas impressões com esse tema na cabeça, já tinha escrito muito pouco sobre isso mas resolvi me aprofundar. Fiz um texto e quando comecei a fazer as experimentações pensando em escrever um projeto não funcionou. Eu fui imprimido, fui fazendo umas coisas e fui voltando para o desenho e para a pintura. Daí perguntei: -“Porra, e agora o que eu vou fazer com isso? Porque agora eu vou ter que fazer!! Eu vou ter que fazer! Não sei o que é que vai dar, mas vou ter que fazer!” (Risos)
Daí comecei a ilustrar o texto e percebi que eu iria usar só um material porque são ilustrações para um texto,  na segunda ilustração já mudou tudo!! O formato, cada imagem, cada personagem que eu pedia ou era só grafite ou era só pintura ou era tudo misturado… Pensei em construir bem livre mesmo sabendo que não poderia fazer um livro de artista que eu pegaria costuraria aquelas imagens todas. Teria que ser algo que seja impresso! Daí surgiu a coisa da revista, que ia ser só digital, mas algumas pessoas estavam a acompanhar  e diziam: “não! tem que fazer impresso!!” – “mas como é que eu vou fazer impressa se não tem grana para imprimir?” Foi então que pedi apoio à CEPE, e consegui imprimir 2000 revistas.
Mandamos para uma lista pessoal que eu consegui montar com muito trabalho mais ou menos 500 ou 600 nomes de artistas, de jornalistas, de amigos. Mas aí foi entrando Ministério Público, Senado Federal, STF, STJ, Assembleia do Estado, Câmara Municipal, etc. Foram enviadas para todos esses órgãos, foram 1000 ou 1500.
Eu mandei para parlamentares com posicionamentos diferentes, para provocar mesmo uma discussão, aprofundar o debate. Aqui para Porto Alegre nós trouxemos 200 revistas para fazer o lançamento no dia 14 e distribuir gratuitamente.

Revista Bandido bom é bandido morto. 2022

Então você vê… comecei a fazer um texto em setembro e a coisa foi!!! Eu nem sabia que ia fazer uma revista impressa!!
…minha vida foi sempre de não parar de trabalhar e quando esbarro uma dificuldade eu vou para outro trabalho. Tive essa sorte também de começar a trabalhar com processos diferentes que aí quando eu estou cansado de fazer uma coisa eu faço outra, então… vivo no ateliê trabalhando e quando um projeto não dá certo ou quando não consigo financiamento eu vou para outro!! Se eu não tô com grana para fazer escultura eu faço desenho, papel e lápis tenho! Não me queixo, vou viabilizando o meu trabalho como posso. Minha vida essa é essa, tocar a vida e o trabalho sempre!!

P.C.: Como essa exposição veio para Porto Alegre?

Lilian Maus: Esse encontro ele sempre foi regado… vou repetir a história!… regado a pamonha, queijadinha, canjica, café! Durante os últimos 10 anos estive bastante em Recife por ter família lá, com exceção agora dos últimos anos de pandemia, então nos encontramos muito na casa do Gil, Gil Vicente, em uma cozinha junto do atelier e aí era…

R.V: muita comida!

L.M.: …muita comida, muita conversa, eu de férias com tempo para tudo isso… então se formou esse vínculo afetivo. E nessa época o Renato estava trabalhando e também estava morando e depois passou a ter um espaço de trabalho que era a Sala Recife para restaurar muitos trabalhos dele mais antigos que estavam com problema e tinham que restaurar. Nisso eu fui acompanhando mais cada vez mais o processo na medida que ele foi tendo um espaço de trabalho na casa do Gil. Eu ficava bastante impressionada não só com o volume de trabalho mas com a qualidade, e por ser um artista que não costuma circular tanto quanto outros.

R.V.:  Meu temperamento era muito difícil quando era mais jovem!

L.M.: O Renato quando era mais jovem não andava nem de avião, então isso dificulta…

R.V.:  Eu dava não para qualquer coisa que dissesse “tem que ir para o avião”… (risos)

L.M.: E era muito tímido também, principalmente na época em que a gente costuma a circular mais, que é na juventude, na época em que ainda não se está sólido na carreira ainda. Acredito que isso em algum momento ali se tu não faz também vai dificultando.

Acima: Diário de votos e ex-votos, 5000 desenhos em grafite sobre papel. 2003-2005. Abaixo: detalhes

Essa exposição, uma parte dela aqui presente, dos votos e ex-votos esteve também para o CCSP, somente essa parte do trabalho, dos ex-votos. Ele fez uma exposição similar a essa mas sem as pinturas em um espaço grande lá do Recife, que tem alguns catálogos técnicos dessas exposições. Eu via muito trabalho dele lá mas não via circulando, a não ser nessa ocasião em São Paulo… mas não dessa dimensão, trazendo tantas obras e de grandes dimensões. Em função do programa2 que eu coordeno lá na Universidade (UFRGS) me ocorreu a ideia, que seria única forma de trazer artistas que não são acadêmicos, me ocorreu, poxa o Renato, assim como Gil (Vicente), não é um artista acadêmico não,  tem nem graduação completa, então não tem como trazer ele de outra forma não é sem ser com os meios que eu tenho hoje, que é dentro da universidade, sem ser a extensão. E ele tem muito uma história que, embora não tenha frequentado escola de arte acadêmica, tem a escola dos ateliês dos artistas do Recife. E o que eu noto convivendo muito nesse circuito Porto Alegre – Recife durante os últimos 10 anos, noto que lá academia não é muito forte. O ensino de arte dentro da Universidade Federal de Pernambuco é uma coisa bem mais recente do que é aqui no Instituto de Artes (UFRGS). Me parece que eles ainda não têm essa solidificação acadêmica que a gente tem aqui, então o discurso é um pouco diferente e eu vejo que a troca entre os artistas se dá num outro ambiente. Muito mais do que temos aqui, que essa coisa despojada, de visitar o ateliê do outro… talvez o clima também ajude…

Isso é o que eu queria trazer para cá! Uma erudição de trabalho mas sem passar por um discurso acadêmico, que eu acho que é isso que também o Renato fala em teórico e não-teórico, nesse sentido. Não estar preocupado num discurso acadêmico mas sim preocupado em refletir sobre o trabalho e sistematizar o trabalho.

R.V.:  …e também eu nasci velho!! (Risos)
Não viajar… tinha medo de avião… só fui viajar com 30 e poucos anos! Aí fui perdendo o medo. Não gostava de viajar sabe, nunca viajo a passeio sim só viagem para o trabalho mesmo. Daí eu aproveito para passear!! Daí eu quero conversar com você, com aquele outro, e o outro! E de uns anos para cá eu comecei a gostar, relaxei mais. Participei, em 2009, de um programa até fora do país, na Dinamarca. Mas isso era impossível há alguns anos atrás, era impossível porque eu… nossa era realmente… não ia!
…mas é verdade essa coisa desse medo, dá uma postura mais mas fechada sabe? Mais de trabalho de ateliê. Acho que várias coisas me animaram para circular mais com o trabalho. mesmo assim… Outra coisa foi sair do ateliê. Até o projeto, o primeiro projeto de residência que foi esse no IAC (Instituto de Arte Contemporânea – UFPE)… isso aí me impulsionou muito, porque eu era muito trancado e essa coisa de interagir com o público, interagir com o funcionário da instituição sabe, de ter todo um movimento de gente participando ativamente do trabalho também mudou muito é… mudou muito tudo!!!
Eu fiz muita residência, muita residência mesmo. Só esse projeto Diálogos foram 5! Passei mais de 4 anos sem ter trabalho de ateliê próprio, era de uma residência para outra, de um museu para outro museu. Eram 11 meses no IAC, depois de 5 meses no MAMAM.
Estou ficando mais novo depois de velho, entendeu? O que eu queria dizer era isso!!

Esquerda: Atado. Grafite sobre lona crua. 2020. / Centro: Assustado. Grafite sobre lona crua. 2020. / Direita: A infância interrompida. Grafite sobre lona crua. 2020.

P.C.: Muitos cegos e muitas covas atualmente no Brasil?

(Nesse momento somos interrompidos por um segurança que nos solicita que retornemos os bancos da CCMQ para suas posições originais, pois lhe foi dada a ordem dizendo que seria proibido movê-los…)

R.V.: Brasil é o país que mais cultiva a burocracia não é não?…respondendo a tua pergunta,  muitos cegos e muitas covas. A resposta está aqui nessa arrumação toda!

P.C.: Parece que além da burocracia tem um que de um micro exercício de poder… Bem, voltando ao assunto da revista “Bandido bom é bandido morto”. Talvez do porquê da revista… temos um dado do Observatório de Censura na Arte que aponta que ocorreram cerca de 60 casos de censura a manifestações artísticas no Brasil desde o caso da Queer Museu3. E, de acordo com levantamento realizado pela Juliana Proenço4, desses 60 casos 35 estão relacionados a exposições de obras de artes visuais.

R.V: É gente que nunca pisou nos museus, nas instituições, nas galerias e de repente começou a ir para fechar exposições, sabe. Pessoas ignorantes que nunca participaram da vida cultural do país. Inventam coisa e outro estúpido aceita e passa adiante vai se junta e vão fechar uma exposição. Gente que nunca pôs o pé dentro de uma galeria, dentro de um museu e que começa a participar da vida cultural para acabar com ela! Não é? Isso é uma estupidez! Mas eu fiquei muito impressionado também quando houve a proposta de levar para o Parque Lage, o que aconteceu, e o financiamento conseguiu mais do que o previsto. Só que se você pegar o número de participantes do financiamento, eu esperava que fosse um mar muito maior de gente… E aí eu fiquei muito incomodado porque eu participei, eu estava duro! …mas você deixar de tomar uma cerveja na sexta-feira, você paga R$20 para participar de um projeto daquele, que é da maior importância porque ali sim é uma resistência! Não é só você gritar e falar… Não, você está ali viabilizando uma coisa que foi fechada em outro lugar! Então aquilo está vivo em outro lugar! Cheguei a conversar com algumas pessoas, porque eu disse – “olha eu tô duro mas vou participar!”. O mínimo parece que era R$20 ou R$25. Teve gente que disse: “ah não, mas eu não vou participar porque eu não gosto de não sei quem”… Eu acho que o artista tem que exercer mais a cidadania, porque essa coisa de estar querendo like, ir para a frente da instituição para gritar… e na hora de você dar 20 pau para viabilizar uma exposição que foi fechada sabe, eu acho que é coisa mesquinha também. Acho que é um comportamento não só da classe artística, mas um comportamento da sociedade brasileira de gritar muito e exercer pouco a cidadania! Parece que quer gritar porque vai aparecer na frente de uma coisa… Claro, tudo isso a gente sabe que é importante, toda essa gritaria, toda essas manifestações são importantes; mas eu acho que é na hora de você ir para uma ação que pode viabilizar alguma coisa que é importante, aí há um esvaziamento! Parece que as redes sociais estão mandando mais do que as coisas que são mais objetivas e concretas que você pode fazer.
Essa coisa do exercício da cidadania eu acho que nós temos muito pouco. Citei a situação do Santander porque me incomodou muito quando eu comentava com alguém que estava participando, daí eu pedia: pô, colabora dá 20 pau… ah não, porque aí tem não sei quem, tem não sei… sabe? Aquela conversa… eu acho que é uma coisa muito ruim!

Série Cancan. Resina de poliéster. 2012.

P.C: A pesquisa para a revista parte de um dado estatístico de que 60% dos brasileiros concordam com a frase: “bandido bom é bandido morto”. Tu constróis um trabalho que procura mostrar as incoerências entre os que se dizem cristãos e o desejo de morte. Tu acredita que esse desejo de morte pode ser também, ao menos em parte, alimentado por políticas de governos que banalizam a morte, especialmente da população mais periférica, mais carente, e que essa população mais periférica e carente não consegue observar que já pode estar fazendo parte de um tipo de necropolítica?

R.V.: Existe uma pena de morte extraoficial no Brasil. Agora o pior é que querem ainda mais oficializar. O que já é ruim querem tornar oficial, quer dizer, instituir a pena de morte como a pena máxima. Há um número grande de pessoas que querem isso… Então respondendo a tua pergunta se o político potencializa isso, é claro que ele potencializa! É como se eu sou pai e tenho uma família, meus filhos e eu digo que a criança tem que bater no outro. Se alguém passar por você e lhe incomodar pode socar a cara, pode chutar… pode ser menina, mas você chuta! Quer dizer, você está estimulando a violência, o machismo… Então se um líder político, que consegue exercer influência por pelo menos uma boa parcela da população, ele diz que tem que matar, tem que… você libera os demônios! Então pode matar? Então eu vou me armar!! Se tiver qualquer coisa eu vou poder atirar eu vou poder matar… tudo isso leva a gente a um caminho de uma violência cada vez maior. Não tenho dúvida que esse estímulo a violência vai tornar o mundo mais violento…
Então, como é que você diz assim – “eu sou cristão mas acredito nessa frase!”?  Mas o Cristo foi preso e foi torturado e executado porque era considerado um bandido, pois se ele fosse inocentado não teria sido condenado e não teria sido executado. Inocentado é libertado, condenado é executado, e executado porque o Estado tem o poder de executar. A Joana d’Arc e todos esses que eu representei na revista, todos eles foram executados legalmente. Não foi morte informal de um grupo que assassinou outro, grupo político rival que assassinou. Não, foram execuções legais. Garcia Lorca fuzilado durante a ditadura do Franco. Coloquei dois ali que foi durante o período de Stalin, que foi um período duro na União Soviética. Então, independente de ideologia, de ser um estado teocrático ou não, essas execuções acontecem durante a história da humanidade em vários pontos, em vários países. Eu não critico quem defende a pena de morte, mas não venha me dizer que defende e que é cristão, pois isso é uma incoerência não cabe no cristianismo, esse tipo de defesa. E estamos vivendo esse momento… isso na verdade sempre existiu. Agora querer naturalizar esse tipo de coisa não dá!! Eu acho que isso é completamente incompatível, e acho muito impressionante quando alguém diz isso. Estamos num momento que tem muitos políticos, em todas as esferas do poder, que olha… de sentir inveja de Incitatus. Aquele senador Romano que era o cavalo de Calígula. Tem gente que tem não sei quantos assessores, tem lá o auxílio paletó e todos esses privilégios, tem tudo. E ele tinha, não sei quantos criados… veste púrpura pois é a cor do Império, comia num tacho folheado de ouro com pedras… mas morreu cavalo!! A gente tem um bocado que não vai morrer cavalo, vai morrer burro!!! É um momento muito, muito triste de você ver porque essas mudanças para conter esses impulsos de violência, para estabelecer uma sociedade que pelo menos tenha um mínimo de civilidade, de convivência, de convivência com as diferenças… isso tem tido um esforço de parte da sociedade para ir para caminho contrário, para liberar tudo o que a gente tem de pior. Todo mundo tem luz e sombra dentro. Aí está a coisa do Cristo preto, Cristo branco, Cristo para cima, Cristo para baixo… levantando essas questões… num momento que você libera a coisa como um pai que estimula os filhos a serem agressivos e preconceituosos, os políticos liberam para a sociedade esse tipo de comportamento, é claro que vai influenciar um monte de gente a seguir esse tipo de coisa. A gente vê aí as grandes tragédias coletivas, guerras e perseguições e tudo mais, durante a história da humanidade contudo, isso não é só aqui, isso é uma coisa que a história da humanidade mostra.

P.C: Responda rápido. Bandido bom é bandido morto ou artista bom é artista morto? (Risos!!)

R.V.: Para esses caras da cultura… agora mesmo teve essa lei que foi vetada porque não é de interesse… como foi o argumento…? não é do interesse da sociedade! Teve uma frase assim, não é de interesse público ou mais ou menos isso. O que é um povo sem cultura, existe isso? Alguns existiram durante muito tempo sem território, mas conseguiram sobreviver por conta da cultura. Então é aquela coisa, tem gente que quer mudar a história mas só tem a borracha, mas não sabe escrever.

Cristo e Anti Cristo Coca-Cola I. Resina de poliéster. 2010-2012.

P.C.: Tem um dado que tu trouxe em uma entrevista para a universidade (UFPE), está em um vídeo no YouTube5 onde tu comentas sobre quantas Igrejas surgiam por dia no Brasil…

R.V.: 25 por dia, mais de uma por hora!! Isso foram dados da receita federal em 2010 e 2017. Qual é o lugar do mundo que tem isso? Acho que não tem não, ao menos não como aqui no Brasil. A facilidade para se montar e a facilidade também de você lavar dinheiro para você fazer tudo que não presta porque é uma casa comercial, é uma casa de negócios. Por isso que tem aquele mealheiro ali, vemos a exploração da fé a gente vê muitos absurdos. Antigamente a venda de indulgência era para ir para o céu e hoje é para você conseguir tudo, namorada, emprego…
E aqui é um terreno muito fértil para esse tipo de coisa, e junto disso vem o financiamento desse dinheiro fácil a políticos, aí entra em todas as esferas do poder, você vê que que esse tipo de cargo público ocupado por pessoas desses grupos eles têm crescido também pois uma coisa alimenta a outra.

Esquerda: Mealheiro. Resina de poliéster e dinheiro. 2011 / Direita: Colmeia. Resina poliéster. 2010-2012

O Brasil é um país terrivelmente retrógrado. Eu assisti ao vivo a aprovação da lei do divórcio no Brasil… foi uma luta para se aprovar. Se você for ver a questão da escravidão, se você for ver todas essas coisas, o Brasil sempre está atrás do resto. É um país que eu torço para que mude porque ele tem sido terrivelmente retrógrado. Mas acho que tem uma coisa boa, tem muita coisa boa acontecendo, tem muita gente boa, tem muita gente séria trabalhando em todas as áreas!
Pois é isso! Tem que continuar, tem que acreditar mesmo, tem que continuar. Você tem que atuar, você se entristece pode até se revoltar, mas tem que aprender a não se desesperar, porque lembrando o autor de um poema que leva o nome aqui da casa: – “esses que aí estão atravancando o meu caminho, eles passarão… eu passarinho”. É isso! Tudo passa e o que é bom fica, através do trabalho é a forma de resistência.

P.C.: Como a proposta da Lílian aqui foi fazer um resgate, digamos assim, de 20 anos da tua produção, uma perguntinha para fechar. O que o Renato de 20 anos atrás diria para o Renato hoje?

R.V: Tu era muito velho e chato cara!!! Tu estás muito melhor agora! O pior é que tem menos tempo de vida para trabalhar e tem que trabalhar mais ainda para fazer alguma coisa! Há 20 anos atrás não estaria nem aqui!

Canudos, Caneca, Direta… e o Brasil não mais resiste. Grafite sobre lona crua. 2006.

Lilian Maus: Quero fazer uma pergunta par o Renato também… Onde que tu se sentes mais confortável trabalhando? Pois são diferentes materiais – tem o grafite, tem a pintura, tem a resina… Qual a diferença do Renato em cada uma dessas produções? …pois me parece que quando tu trabalhas com escultura tem uma coisa de humor que prevalece, um despojamento, e isto é mais a tua cara, eu acho que tu te soltas mais. Enquanto no grafite e na pintura tu és bem mais tradicional…

R.V.: É que o grafite a pintura começou a mais de 20 anos! (Risos!)
…e o objeto mais agora!! …eu nunca tinha pensado nisso! Eu estou agora fazendo associações com a pergunta de vocês sobre o Renato de 20 anos!

L.M.: Mas eu vejo isso! eu acho que isso na tua obra… me parece muito mais jovial o que tu faz em escultura do que o que tu faz com os meios mais tradicionais.

R.V.: Que maravilha… pena que a idade não volta!!

L.M.: Até pelo fato de trabalhar com escultura, com o molde, com materiais menos nobres, que não tem tanto um fetiche – tipo um bronze… uma escultura por subtração, moldes. É uma coisa mais despojada, é quase que uma brincadeira sabe…

Cancan – pretos. Resina de poliéster. 2012.

R.V.: A experiência de experimentar uma coisa que eu nunca tinha feito…
L.M.: Por exemplo, quebraram diversas mãozinhas no transporte dos Cristos, e você levou isso numa boa. Se tivesse acontecido isso com a lona ou com os desenhos, tu enlouqueceria teria uma dor no coração! Me parece que tu tratas diferente os trabalhos, e nem te dá conta. Parece que tu tens muito mais apego com as coisas que tu faz de maneira mais despojada… Talvez tenha a ver com o múltiplo da escultura e com o objeto único desenho e da pintura… mas é que eu noto que é mais uma brincadeira de criança, que tu faz assim meio despretensiosamente e os outros não, carregam uma carga de tradição maior. Me parece que é onde tu começou também trabalhando e com uma interação com artistas que vinham de uma tradição, respeito que te leva a ter um outro tipo e de reverência por aquele suporte. Já no caso das esculturas, eu acho que tem mais desapego, também, pelo fato de ser algo que tu não sabe direito como vai montar no espaço expositivo. Claro, elas têm uma estrutura chave básica mas tu já vai com essa com esse espírito de que vai aceitar a mudança…

P.C.: Viu?! Essa conversa serviu para alguma coisa..!!! (Risos!!)

R.V.: Vivendo e aprendendo!!! Mas eu melhorei, né…?!!


  1. Alexandre Nicolodi e Júlio César Herbstrith.
  2. Programa de extensão: histórias e práticas artísticas. É um Programa de Extensão voltado ao ensino e à difusão da arte. Realizado pelo Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS em parceria com a FEENG, com a coordenação das professoras Lilian Maus e Camila Schenkel. Oferece cursos teóricos e práticos. As atividades são certificadas pela UFRGS e tem como público crianças, adultos e idosos com ou sem iniciação em arte. O programa resulta de importantes parcerias institucionais e também da aliança firmada entre professores, alunos em formação e egressos do IA/UFRGS para difundir a produção de conhecimento à comunidade externa à universidade. Além disso, estão incluídos no projeto os saberes e práticas de artistas não acadêmicos e pesquisadores de outras áreas que venham a contribuir para as artes visuais a partir de uma perspectiva transdisciplinar. Renato Valle foi o artista selecionado pelo programa para participar de Residência em arte-educação, onde foi estabelecida parcerias com escolas públicas, cde/ieavi e ações educativas nas aulas da graduação de Artes Visuais e História da Arte do IA/UFRGS.
  3. Queermuseu — Cartografias da diferença na arte brasileira. Realizada em 2017, a mostra foi encerrada após pouco menos de um mês de sua inauguração devido à forte pressão de grupos religiosas e conservadores, que pediam o fechamento da mesma.
  4. Interrupções e retomadas: projetos artísticos irrealizados da ditadura militar no Brasil (1960 – 2010). Dissertação de mestrado defendida em 2021, PPGAV/UFRGS.
  5. https://www.youtube.com/watch?v=Ks1XXuuAgk4